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Uma foto de uma montagem legal de um Prestosuchus no Bayerische Staatssammlung für Paläontologie und Geologie (Munique). 

Esses arcossauros, da linhagem dos crocodilos (Crurotarsi) são relativamentecomuns  em estratos do Triássico brasileiro. São tidos como predadores de topo de cadeia, um nicho ecológico que logo seria substituído por dinossauros terópodes. 

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Felipe Pinheiro

 

Muitas vezes, quando estudamos seres vivos, nos deparamos com coisas que nos chamam atenção por parecer não fazer nenhum sentido. Claro que, como bons curiosos que somos, a primeira pergunta que vem à mente é: por que? Por que os roedores têm dentes que não param de crescer e precisam se esforçar, por toda sua vida, em mantê-los em um tamanho anatomicamente viável? Por que as baleias são tão grandes? Por que pterossauros tinham cristas tão chamativas? Por que tiranossauros tinham braços tão pequenos?

Aqueles mais curiosos passam, então, a levantar hipóteses para explicar tais fenômenos naturais. Do tipo: “os dentes dos roedores são assim porque a dieta destes animais os desgasta de tal forma que eles precisam crescer sempre”; “baleias são grandes porque vivem na água, e um meio mais denso pode sustentar sua massa”; “pterossauros tinham cristas porque precisavam chamar atenção de parceiros”; “tiranossauros tinham braços tão pequenos porque não precisavam deles para conseguir alimento”. Ainda mais arriscadamente, muitos de nós tendem a atribuir funções adaptativas a estruturas que não compreendemos bem, de forma tal que, já que os organismos são supostamente perfeitamente adaptados ao meio em que vivem, suas estruturas inexplicáveis provavelmente evoluíram até aquele estado por algum motivo. Afinal, se temos apêndice, ele deve servir para alguma coisa. Se os tiranossauros ainda tinham braços, eles devem ter evoluído até seu tamanho diminuto de forma a servir, de forma perfeita, ao ajudá-lo a se levantar ou para segurar a parceira durante a cópula.  Todas as estruturas, pelo simples fato de existirem, devem ser adaptativas, ou seja, devem dar alguma vantagem àquele que as possui. Nossa tarefa, como curiosos, é a de descobrir essa função oculta e compor uma história de como a seleção natural, aos poucos, moldou aquela estrutura daquela forma.

Em qualquer livro de biologia, encontramos “historinhas” de como estruturas passaram de um estado ancestral a como são observadas hoje. Geralmente, duas coisas são invariavelmente observáveis em tais historinhas. Primeiramente, a seleção natural é sempre reconhecida, sem maiores questionamentos, como agente das mudanças. A seleção natural molda as estruturas da forma como elas são hoje e para a função que desempenham hoje. Em segundo lugar, o gradualismo está sempre presente. As mudanças são sempre “lentas, graduais e continuas”. Assim, os pescoços das girafas teriam crescido lentamente, no decorrer das gerações, movidos pela incansável busca destes animais por alimentos. Da mesma forma, as nadadeiras dos sarcopterígeos teriam, lentamente, se transformado nos membros dos tetrápodes, para que esses animais pudessem ocupar nichos vazios no ambiente terrestre. E assim as coisas andam. Tais historinhas são aceitas como verdade até que alguém conte uma melhor. Às vezes as “historinhas melhores” são acompanhadas de evidências científicas, como a constatação de que os membros do tetrápode ancestral surgiram ainda no ambiente aquático. No entanto, elas não passam de “historinhas mais convincentes”.

Algumas coisas fundamentais são esquecidas quando criamos as historinhas. A primeira, e mais óbvia, é que elas, simplesmente, não são testáveis. Por mais evidências que disponhamos do meio (físico, interações ecológicas, etc.) em que os ancestrais dos protagonistas de nossos roteiros evolutivos viviam, nenhum efeito de causa/consequência pode ser estabelecido com base em observações atuais. Da mesma forma, não podemos nos confiar (para isso) no registro fóssil, principalmente porque, ao contrário do que é sempre divulgado na mídia, formas intermediárias não podem ser encontradas como fósseis (uma impossibilidade estatística) e, mesmo que pudessem, jamais poderiam ser reconhecidas como tais (uma limitação inevitável de nosso método científico). Para dar um exemplo, os belos “intermediários perfeitos” entre dinossauros e aves – dinossauros carnívoros com penas – datam de alguns muitos milhões de anos após o surgimento do primeiro animal geralmente considerado como ave (Archaeopteryx). Assim, como considerar estes animais como intermediários entre “répteis” e aves? Esse assunto realmente me interessa e acho que merece um texto futuro.

Outra coisa que geralmente deixamos de lado é o fato de que a seleção natural é incapaz de moldar estruturas para uma determinada finalidade. O “papel” da seleção natural nos processos evolutivos é o de uniformizar uma população heterogênea utilizando, como arma, fatores bióticos e abióticos do meio em que esta população vive. Esta função, um tanto mecânica, é incapaz de direcionar estruturas e morfótipos a uma determinada finalidade. Assim, dizer que a seleção natural modificou uma estrutura x para que ela desempenhasse um papel y é, no mínimo, errado. A seleção natural, como todo processo mecânico, não pode prever ou determinar finalidades. Aí entra a famosa frase “a Natureza não é teleológica”.

Pra mim, mais importante que isso tudo (no momento) é a dificuldade de reconhecermos outros fatores como agentes dos processos evolutivos. Cada vez mais se tem constatado que, embora a seleção natural, de fato, seja crucial, outros fatores tiveram um papel tão relevante – ou muito mais relevante – na história evolutiva dos animais e plantas que estudamos hoje. E esses fatores, claro, nunca entram em nossas “historinhas adaptativas”. Hoje se sabe, por exemplo, da importância de genes Hox na evolução do padrão corporal de animais segmentados. O estudo destes genes nos mostra o quão aleatórios foram os processos que nos levaram a ter cinco dedos nas mãos, ou os insetos a ter três pares de pernas. Da mesma forma, hoje se reconhece o importante papel da deriva genética (outro processo completamente aleatório) no “controle” das frequências gênicas e, consequentemente, evolução de populações pequenas, tais como predadores de topo de cadeia (alô, T-rex?). Na verdade, a deriva genética, e não a seleção natural, é o principal agente evolutivo nesse tipo de populações. Ainda menos reconhecidos em nossas historinhas são os efeitos de extinções, migrações, eventos aleatórios que liquidam com grandes parcelas de populações… e por aí vai.

Duas principais conseqüências do reconhecimento destes outros fatores me vêm em mente agora. Primeiramente, as mudanças lineares que prevemos em nossas historinhas (do tipo, x se transformou em y para exercer a função z) caem todas por terra. O reconhecimento de eventos aleatórios como decisivos nos processos evolutivos nos impede de imaginar uma mudança gradual e retilínea de uma estrutura em direção a outra. Tais modificações são repletas histórias paralelas e tomam a forma de um galho em uma árvore, não de uma linha reta (muito embora boa parte dos ramos deste galho não sobreviva). Outra consideração importante é a de que estes outros processos não são lentos nem graduais… e, muito menos, contínuos! Mutações aleatórias em genes sistêmicos, deriva genética em populações pequenas, extinções (em massa ou não) tendem, com sorte, a acelerar as modificações evolutivas. Sendo um pouco mais realista, estes fatores acabam levando as populações nas quais atuam a um rápido fim.

É bom deixar claro que, quando falo em “rápido” ou “devagar”, sempre estou me referindo ao tempo geológico. No entanto, modificações visíveis também podem ocorrer no espaço de tempo de algumas gerações. The hopeful monster strikes back!

Agora, voltamos aos braços do tiranossauro como um modelo geral das modificações evolutivas. Considerando os fatores acima, qual seria, realmente, a relevância de se perguntar o porquê de as estruturas biológicas serem como são? Claro que minha “historinha” não seria testável, mas, se eu fosse inventar uma para o T. rex, a rechearia de eventos aleatórios, flutuações gênicas e mutações sistêmicas pontuais. E os braços do T. rex não teriam nenhum motivo real para existir, embora isso não implique que eles não tivesse uma função. Apenas que é uma ideia errada achar que eles foram moldados para aquela função. Assim, nem todas as estruturas são, necessariamente, adaptativas.

 

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Assim, os processos evolutivos, ou seja, o estudo de como as estruturas se tornaram o que hoje observamos, passa a ser relevante, em detrimento a um suposto motivo. A Biologia Evolutiva deve ter, como principal objetivo, investigar os agentes e circunstâncias relevantes em mudanças de frequências gênicas e, de forma mais abrangente, mudanças fenotípicas, populacionais, macroevolutivas…  Afinal, fazer as perguntas certas é o primeiro passo para a obtenção de respostas satisfatórias e, na medida do possível, próximas da realidade (embora devamos nos acostumar com  a idéia de que nunca vamos alcançá-la de fato).

Vou deixar aqui algumas imagens do Tyrannosaurus do Museu Americano de História Natural (Nova York).

Claro que, como bom aspirante a paleontólogo, eu sou apaixonado por esse bicho. É impressionante a sensação de estar frente a frente com um predador de 12 metros e tentar imaginar qual a porcentagem do seu corpo caberia na na boca dele.

Esse esqueleto, em particular, é praticamente completo (embora, de certo, tenha elementos de vários espécimes diferentes, como é comum em montagens de museus antigos). O crânio original está no chão, do lado do bicho, já que é muito pesado para a armação metálica.

Bem, na primeira foto, uma vista geral do bicho e, na última, um ser humano de 1,77 m como escala (eu – uma explicação pra pose estranha no comentário da foto, hehe).

Mas isso não importa. O que eu queria mostrar, de verdade, é a segunda foto. Todo mundo já deve saber que esse dinossauro tinha membros anteriores ridiculamente atrofiados, quase dando pra usar a palavra  vestigiais.

Agora, a pergunta que todo mundo faz (e nenhuma resposta parece ser unânime): por que? Por que um animal como esse teria braços tão pequenos?

Bem, eu tenho algumas idéias a respeito desta pergunta, mas queria a opinião de um ou dois eventuais leitores antes de falar mais um pouco sobre isso. Se alguém se interessar, é só comentar (aqui no blog).

 

Felipe Pinheiro

 

Baleia é peixe?

Postado por Felipe Pinheiro

O texto abaixo foi completamente inspirado por este.

 

A quebra de paradigmas, o “abandono” de idéias tão amplamente aceitas que começam a fazer parte do senso comum, em muitas ocasiões, é fundamental para o progresso científico. Embora a Ciência raramente avance por meio destas revoluções epistemológicas, muitas das grandes sacadas (e boa parte das que damos importância quando lembramos da história das descobertas científicas) começam com idéias que, embora nos pareçam óbvias hoje, necessitaram de mudanças radicais na forma de pensar de quem as concebeu e (mais delicado ainda) da sociedade para as quais foram apresentadas. E estas mudanças, geralmente, não acontecem da noite para o dia. Muitas vezes precisam de décadas ou mesmo séculos antes de entrarem, novamente, no senso comum.

Quando estudamos a história dos pensamentos e idéias que culminaram em A Origem das Espécies, exaltamos sempre o abandono do pensamento tipológico como uma quebra de paradigma fundamental para nossa compreensão atual de como os seres vivos evoluíram através do tempo geológico. Este pensamento tipológico, ou seja, a idéia de que os seres vivos teriam uma essência, um plano básico imutável, estaria claramente presente nas obras de Lamarck e, supostamente, ausente nas idéias de Darwin e dos evolucionistas que “redescobriram” suas idéias, compondo a (já nem tão Nova assim) Síntese Evolutiva (Mayr, Dobzhansky, Simpson, Huxley, etc.). O abandono das “essências” foi fundamental para a simples concepção de que seres vivos podem, sim, mudar de forma completamente imprevisível, nunca estando presos a um tipo pré-concebido. No entanto, lendo os textos de meus amigos Júlio Saraiva e Heideger Nascimento, me peguei pensando se este pensamento está, realmente, ausente na obra destes autores e já faz parte do senso comum.

Há alguns anos, em uma reunião do Grupo de Discussão de Evolução da Universidade Federal do Ceará, comentei que, segundo o paradigma atual, se considerarmos peixes como um clado, ou grupo natural (onde todos os integrantes compartilham um ancestral comum) a idéia completamente intuitiva (compartilhada por qualquer criança de dez anos ou menos) de que baleia é peixe, está completamente correta. Na verdade, se peixes existem como um clado e não só como uma palavra solta, que designa animais com um plano corporal conservativo compartilhado, sem considerar as relações de parentesco, eu, você, celacantos, salamandras, cachorros, elefantes, girafas e baleias somos, sim, peixes!

Os animais que chamamos, de forma generalista, de peixes possuem várias características em comum. São aquáticos, têm nadadeiras, muitos têm escamas… mas, e quanto à história evolutiva e às relações de parentesco destes bichos? Os celacantos e peixes pulmonados estão muito mais proximamente relacionados a nós e às baleias (e a todos os demais tetrápodes) do que aos tubarões ou peixes de nadadeiras raiadas. E agora? Se quisermos chamar celacantos de peixes, teremos que nos chamar de peixes! E o que acontece com as baleias? Baleia é peixe, ora.

 

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“sou um peixe glorificado”

 

Claro que esta idéia, a principio, nos parece absurda e herética. E assim ela foi tratada no grupo de discussão de evolução da UFC. E comecei a perceber que isto está intimamente ligado ao fato de que não abandonamos de verdade o pensamento tipológico. Segundo o senso comum (e o pensamento da maioria dos estudantes de biologia), peixes têm uma essência. A partir do momento em que a nadadeira de um peixe se modifica a ponto de parecer superficialmente completamente diferente da estrutura que a originou, ela passa a ser chamada de membro. Sua origem é esquecida e os animais que possuem membros não são mais peixes. São tetrápodes, animais glorificados, que deram origem à “perfeita máquina” que é o corpo humano (por favor, leia a ultima frase em tonalidade irônica).

Mas não vamos nos sentir mal por conta disso! Não fomos apenas nós, meros estudantes de biologia, que falhamos em nos livrar do pensamento tipológico. Ele está sempre presente na Escola Evolutiva de sistemática, proposta pelos mesmos cientistas que idealizaram a Síntese Evolutiva (supostamente aqueles que, assim como Darwin, já teriam abandonado completamente o pensamento tipológico).

Segundo a Escola Sistemática Evolutiva, ou gradista, pelo fato de que tetrápodes acumularam, ao longo das eras, características suficientes para afastá-los de sua essência de peixes, eles merecem ser classificados separadamente, com outro nome. E é esta escola que normalmente seguimos, embora um novo paradigma já exista há décadas. É ela que está sedimentada no senso comum e nos impede de ver claramente que aves são répteis (de forma mais precisa, aves são dinossauros) e baleias são peixes. A árvore da vida se ramifica sempre e seus ramos não podem ser separados em diferentes grupos meramente por semelhanças superficiais.

Mais sobre este novo paradigma de classificação dos seres vivos em breve!

Obs: ver também We are the fishes, my friend

O sexto chakra

Postado por: Felipe Pinheiro

Na tradição hindu e entre algumas outras religiões, a presença de um terceiro olho entre as sobrancelhas (no hinduísmo, o sexto chakra, ou anja) denota uma capacidade intuitiva superior, supostamente relacionada a percepções extra-sensoriais e clarividência. É comum, entre os hindus, a utilização do tilaka, uma marca na testa, simbolizando o desenvolvimento deste chakra.

Estátua cambojana, mostrando Shiva com um terceiro olho entre as sobrancelhas.

O que muitos não sabem é que, na história evolutiva dos vertebrados, um “terceiro olho” é bastante bem distribuído entre diferentes linhagens, sugerindo que esta estrutura possuía e possui, em inúmeros grupos extintos e alguns viventes, um importante papel biológico. A pressão seletiva favorável ao surgimento de um olho voltado dorsalmente estaria, segundo alguns autores, relacionada ao modo de vida dos primeiros vertebrados: animais associados ao fundo marinho, para os quais uma percepção dorsal seria extremamente útil. Basta observar que, em animais bentônicos viventes, os olhos tendem a estar posicionados dorsalmente.

A origem embriológica dos olhos medianos de vertebrados é bem parecida com a da retina dos olhos laterais, os olhos “comuns”, formadores de imagens: todas estas estruturas originam-se a partir de células do diencéfalo (região central do cérebro, na qual está localizada, por exemplo, o tálamo e o hipotálamo). No entanto, embora alguns grupos de vertebrados possam ter desenvolvido olhos medianos com capacidade limitada de formar imagens, estas estruturas estão, normalmente, associadas à detecção de mudanças de luminosidade e reações fisiológicas do ciclo circadiano. Em lampreias, por exemplo, a detecção de luminosidade através do “terceiro olho” condiciona a produção de hormônios relacionados às atividades diurnas e noturnas de estágios larvais.

Dentre os vertebrados viventes, provavelmente, o que apresenta um “terceiro olho” mais bem desenvolvido é o tuatara (Sphenodon). Neste animal, único representante vivo de uma ordem de répteis bem distribuída no Mesozóico, o olho parietal possui estruturas semelhantes a uma córnea primitiva e, até mesmo, um tipo simples de lente. No tuatara, entretanto, este olho está coberto por uma escama opaca.

Dicinodonte, terápsido do Triássico brasileiro, evidenciando um forame parietal bem desenvolvido, onde estaria localizado um órgão pineal (exemplar depositado na coleção paleontológica da UFRGS).

A existência de órgãos deste tipo, no registro fóssil, é inferida a partir da presença de um forame entre os ossos parietais, que formam parte do teto craniano dos animais. Seguramente, olhos medianos estavam presentes em craniados “primitivos”, como osteotráceos e placodermes, também sendo observados em muitos peixes cartilaginosos e ósseos. Diápsidos primitivos, como Petrolacosaurus possuíam um forame parietal proeminente, situação também compartilhada por pararrépteis de forma geral. Forames parietais são, também, bem representados em sinápsidos (grupo ao qual pertencem os mamíferos). No entanto, a partir do período Triássico (o primeiro da Era Mesozóica), houve uma redução relativamente brusca do número de táxons apresentando estes órgãos. Nos dias de hoje, olhos medianos são observados em um número restrito de vertebrados.

Em formas atuais, nem sempre um olho mediano está associado a forames. Em alguns anuros, por exemplo, um órgão frontal, situado entre os dois olhos laterais, é aparentemente homólogo aos olhos parietais de outros animais.

Em linhagens que dariam origem a aves e mamíferos, as mesmas estruturas encontram-se presentes na forma de glândulas pineais, órgãos endócrinos que, além de inúmeras outras funções, controlam reações hormonais desencadeadas pelo ciclo circadiano (coincidência?).

Órgão frontal em um sapo, possivelmente homólogo a olhos medianos de outros vertebdaros. Fonte: wikipedia.

Mais sobre o assunto:

Liem, K. F. et al. 2001. Functional Anatomy of the Vertebrates – an evolutionary perspective (3ª edição). Brooks Cole, 784 p.

Romer, A. S. & Parsons, T. 1977. The Vertebrate Body (5ª edição). W.B. Saunders Company, 600 p.

Postado por Felipe Pinheiro

Em 1869, em uma palestra para a Royal Geological Society, em Londres, Thomas Henry Huxley, um dos mais importantes anatomistas ingleses da época, defendeu formalmente, a hipótese de que a origem das aves estava ligada intimamente aos dinossauros terópodes.

Naquela época, o conhecimento sobre dinossauros, de forma geral, ainda era incipiente (o primeiro dinossauro descrito formalmente data de 1824). Para sua teoria, Huxley baseou-se, primariamente, na osteologia de Megalosaurus. Segundo o anatomista, era possível reconhecer mais de 30 similaridades entre o esqueleto deste grande dinossauro carnívoro e os das atuais aves.

Edward Drinker Cope

Estas idéis, no entanto, são um pouco mais antigas. Já em 1864, Karl Gegenbaur, embriologista e anatomista de vertebrados, analisando a estrutura do calcanhar do pequeno dinossauro Compsognathus, propôs que este terópode teria sido uma forma intermediária entre as aves e os demais répteis. Edward Drinker Cope também já havia feito comparações entre terópodes e aves, evidenciando uma estreita relação entre Megalosaurus e avestruzes.

Como é comum quando hipóteses científicas revolucionárias são apresentadas, estas idéias não foram bem aceitas pelos acadêmicos. Várias teorias sobre a origem das aves já haviam sido propostas. No começo do século XIX, Jean Baptiste Lamarck propôs que as primeiras aves teriam surgido a partir de espécies de tartarugas (o botânico se utilizou do bico córneo comum a estes dois grupos de animais como parâmetro anatômico). Após a publicação de A Origem das Espécies, possíveis grupos precussores das aves variaram de pterossauros a diferentes grupos de arcossauromorfos basais. Alguns cientístas chegaram a propor uma origem polifilética para estes animais – vários grupos diferentes teriam evoluido e resultado na imensa variedade atual.

Na mesma reunião da Sociedade Geológica Real onde Huxley defendeu suas idéias, o paleontólogo Harry Seeley questionou que as similaridades entre Megalosaurus e aves poderiam ser fruto de convergência evolutiva. As características anatômicas comuns poderiam ter sido originadas a partir de adaptações ao hábito bípede.

No começo do século XX, a hipótese terópode perde terreno devido à descoberta do arcossauromorfo Eupakeria capensis. O paleontólogo Robert Broom, autor da descoberta, defendeu que os dinossauros terópodes seriam muito especializados para terem dado origem às aves. Dessa forma, estas, assim como os próprios terópodes, deveriam ter evoluido a partir de formas arcossauromorfas bípedes, similares ao Eupakeria.

Um dos principais argumentos dos críticos da hipótese terópode baseava-se na chamada Lei da irreversibilidade, segundo a qual uma estrutura anatômica, após ter sido perdida no decorrer da história evolutiva, não poderia nunca surgir novamente. Esta lei, que hoje sabemos não fazer muito sentido, era aplicada à uma das estruturas anatômicas mais característica das aves – a fúrcula (conhecida popularmente como “ossinho da sorte”). Esta estrutura é derivada da fusão das clavículas. O problema é que, até aquela época, a presença de clavículas não havia sido observada e nenhuma das espécies conhecidas de dinossauros. Dessa forma, de acordo com a lei da Irreversibilidade, as aves nunca poderiam ter sua origem vinculada a animais sem clavículas. No entanto, clavículas em dinossauros já eram conhecidas. Infelizmente, estas estruturas eram constantemente confundidas com outros elementos esqueletais, como aconteceu na descrição de Oviraptor – um terópode pertencente a uma linhagem bem próxima à das aves.

No começo dos anos 1960, John Ostrom, paleontólogo da universidade de Yale, vasculhando antigas coleções remanescentes das espedições paleontológicas de Barnum Brown, encontrou os restos de uma espécie de dinossauro ainda desconhecida para a Ciência. O paleontólogo batizou o novo animal de Deinonychus antirhopus. Este terópode de médio porte tornou-se, instantaneamente, um marco na história da Paleontologia de Vertebrados – após sua descoberta, a imagem de dinossauros como bestas lentas e estúpidas foi abandonada, dando lugar à ideia de animais ágeis, possivelmente de sangue quente, como é mostrado no filme Jurassic Park.

O estudo de Deinonychus marcou, também, o ressurgimento da hipótese terópode: o animal possuia, inquestionavelmente, inúmeras semelhanças anatômicas com Archaeopteryx, considerado, naquela época, a ave mais primitiva. Pouco tempo depois, o argumento da ausência de clavículas em dinossauros cái por terra – esta estrutura passa a ser reportada em inúmeros dinossauros, incluindo Allosaurus, Tyrannosaurus, oviraptorídeos, therizinosaurídeos, troodontídeos e dromaeossaurídeos.

O oviraptorídeo Citipati encubando seus ovos

Evidências adicionais corroborando a hipótese terópode logo vieram à tona. Uma das mais interessantes é a comprovação de hábitos de nidificação e incubação de ovos tipicamente avianos em oviraptorídeos. A microestrutura da casca dos ovos destes animais se assemelhava muito mais à condição presente em aves atuais do que àquela presente em crocodilos, por exemplo. Além disso, é conhecida a ocorrência de esqueletos deste tipo de dinossauro em postura de choco – os animais foram soterrados enquanto incubavam seus ovos.

Sinosauropteryx

No entanto, a evidência mais conclusiva quanto à origem dinossauriana das aves foi descoberta apenas em 1996, quando fazendeiros chineses desenterraram o esqueleto de um pequeno dinossauro terópode, batizado pelos pesquisadores de Sinosauropteryx prima. As características anatômicas deste animal permitiram-no ser classificado como um parente próximo de Compsognathus. O que chamou, porém, mais atenção foi a preservação, ao longo do dorso do animal, de uma cobertura plumulácea, formada por pequenos filamentos ramificados e com base oca, algo muito próximo do que era esperado para a estrutura das primeiras penas.

Após Sinosauropteryx, uma overdose de pequenos terópodes com penas, provenientes de rochas sedimentares chinesas, encheu as páginas dos mais importantes periódicos científicos. Alguns deles, diferentemente de Sinosauropteryx, já apresentavam penas extremamente bem desenvolvidas, algumas delas muito semelhantes às chamadas penas de voo das aves modernas (estruturas assimétricas e com vexilos fechados, podendo funcionar como um aerofólio). Como exemplos destes dinossauros, podemos citar Caudipteryx, Protarchaeopterys, Beipiaosaurus e Sinornithosaurus.

Em 2003, quando a comunidade científica já está acostumada com a idéia de dinossauros emplumados, mais um animal merece destaque na capa da revista britânica Nature. O dinossauro, batizado de Microraptor gui, possui penas de voo bem desenvolvidas tanto nos membros dianteiros quanto ao longo de toda a extensão dos membros traseiros! Essa característica peculiar faz com que o animal receba o apelido de “dinossauro de quatro asas”. Microraptor é interpretado como sendo um planador arborícola.

holótipo de Microraptor gui

Pouco tempo depois, a descrição de exemplares mais completos de Pedopenna, um animal posicionado filogeneticamente mais próximo das aves do que dos demais dinossauros, revela que este, também, possuia penas de voo bem desenvolvidas nos membros posteriores. A posterior descrição, em 2009, de Anchiornis, um troodontídeo basal, também com penas nos membros posteriores, nos revelou um interessante cenário: a presença de “quatro asas” em um troodontídeo basal, um compsognathídeo basal e uma ave basal sugere que esta seja uma característica primitiva, presente no ancestral comum mais recente destes três táxons. Desta forma, a condição “quatro asas” teria sido um importante estágio evolutivo na origem do voo das aves modernas.

Cladograma mostrando o posicionamento filogenético de Anchiornis, Microraptor e Pedopenna. Retirado de Witmer (2009).

Raros são os cientístas que, hoje, ainda adotam posições contrárias à hipótese terópode. A origem das aves dentro de Dinosauria é, segundo as palavras do paleontólogo Luis Chiappe, tão sólida cientificamente quanto a origem dos humanos dentro dos primatas.

Postado por: Felipe Pinheiro

Para começar, peço desculpas pela falta de atualização no blog. As ocupações cotidianas (especialmente uma disciplina bastante exigente de Paleontologia de Vertebrados) estão tornando o tempo livre cada vez mais raro. Espero, realmente, ter tempo para me dedicar mais em um futuro próximo.

Na última semana, um grupo de pesquisadores liderado pelo paleontólogo chinês Junchang Lü, nos brindou com a descrição de um pequeno pterossauro do Jurássico Médio da província de Liaoning, China. Os fósseis de Liaoning são mundialmente famosos não só pela sua espetacular preservação (comparável à dos fósseis da Formação Santana, na Bacia do Araripe) mas, principalmente, por sua aparente potencialidade para quebra de paradigmas: o último deles foi o achado de um dinossauro relativamente distante, evolutivamente, dos terópodes com uma cobertura do que parecem ser estruturas filamentosas semelhantes a penas.

Para entender o que há de tão especial neste pterossauro (batizado, por razões provavelmente óbvias a todos, de Darwinopterus), é necessário saber alguma coisa sobre a sistemática desse grupo de répteis voadores. Os pterossauros são, de forma geral, formados por dois grandes grupos. O mais antigo deles é um grupo parafilético denominado “Rhamphorhynchoidea”. Genericamente, os pterossauros deste grupo possuem um crânio não tão comprido (quando comparado com os do outro clado de que falaremos adiante), fenestras antorbitais e nasais não confluentes, pernas curtas e fracas, ligadas entre si por uma parte da membrana alar, além de uma longa cauda com uma estrutura de tecido mole em forma de remo em sua extremidade (evidente em várias espécies).  São animais pequenos e, como é apontado por várias linhas diferentes de evidências, arborícolas.

Rhamphorhynchus, um típico pterossauro ranforrincóide

Rhamphorhynchus, um típico pterossauro "ranforrincóide". Fonte da imagem: Wikipedia

O outro grande grupo é o clado Pterodactyloidea. Tal clado é apontado como monofilétco por todas as análises filogenéticas recentes e é formado por animais de tamanhos variados (desde alguns do tamanho de um pardal até outros com o porte de um avião pequeno),  com pernas mais robustas e separadas entre si, cauda curta, metacarpais alongados, crânio comprido,  fenestras antorbitais confluentes com as nasais e pescoço longo, além de outras características.

Pteranodon é um pterossauro pterodactilóide. Fonte da imagem: Wikipedia

Pteranodon é um pterossauro pterodactilóide. Fonte da imagem: Wikipedia

Os ranforrincóides são considerados como animais basais e os pterodactilóides derivados. Como é de se esperar, não se tinha (até agora) idéia de como pterossauros pterodactilóides surgiram a partir de animais ranforrincóides. Os primeiros já surgiam no registro com todas suas características diagnósticas bem definidas.

O inesperado, no entantao, acontece. Os fósseis chineses são, infelizmente, também famosos por suas falsificações. Como acontece também no Araripe, é comum encontrar fósseis “Frankesteins”: em busca de preços melhores por suas peças, vendedores de fósseis misturam pedaços de várias espécies diferentes, “embelezando” os espécimes e ganhando mais de turistas desavisados. Algumas raras vezes, as falsificações conseguem enganar mesmo os pesquisadores. No entanto, ao contrário do que poderia ser sugerido, Darwinopterus não é uma falsificação. Mais de 20 espécimes foram encontrados, sendo referidos ao novo gênero.

O que levantou tanto interesse neste peculiar animal chinês é que ele possui características tanto de pterossauros pterodactilóides (crânio alongado com fenestras antorbitais e nasais confluentes, pescoço comprido) quanto de ranforrincóides (cauda longa, metacarpais curtos, pernas delicadas). As características parecem formar módulos, misturando planos corporais diferentes no mesmo animal: uma cabeça e pescoço tipicamente pterodactilóide e um corpo característico de ranforrincóides.

Holótipo de Darwinopterus modularis. Fonte: Lü et al., 2009

Holótipo de Darwinopterus modularis. Fonte: Lü et al., 2009

Modelos de Evoluçao Modular, onde os caracteres se distribuem desigualmente em diferentes módulos de evolução independente já haviam sido propostos e debatidos na literatura. No entanto (ao menos segundo os autores) um bom exemplo deste tipo de fenômeno não era, até então, conhecido. O que Darwinopterus sugere é que uma cabeça e pescoço tipicamente pterodactilóides tenham evoluido mais cedo e, de certa forma, independentemente do resto do corpo do animal.

É sempre perigoso usar termos como “intermediário”. No entanto, é difícil imaginar um animal que mesclasse melhor características dos dois grandes grupos e tivesse mais a dizer sobre a transição evolutiva entre eles. Como é de se esperar, todo “intermediário” gera ainda mais questionamentos, já que é possível imaginar infinitas etapas de transição entre duas espécies distintas.

Referências:

Lü, J., Unwin, D. M., Jin, X., Liu, Y. & Ji, Q. 2009. Evidence for modular evolution in a long-tailed pterosaur with a pterodactyloid skull. Proceedings of the Royal Society B doi:10.1098/rspb.2009.1603

Salão de anatomia comparada do Museu de História Natural de La Plata, um ótimo lugar para se sentir pequeno.

(clique na foto para ampliar)

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Postado por: Felipe Pinheiro

O Estado do Ceará, já há algum tempo, vem sendo alvo de intensas pesquisas paleontológicas, o que se deve, principalmente, à Bacia do Araripe, inigualável depósito de fósseis do período Cretáceo, reconhecido globalmente tanto pela quantidade quanto pela qualidade de seu material fossilífero.

Talvez a excepcionalidade da Bacia do Araripe tenha contribuído para que algumas pequenas bacias sedimentares (Iguatu, Lima Campos, Icó e Malhada Vermelha), também cretáceas, localizadas na região centro-leste do Estado do Ceará, sejam alvo de pesquisas mais esporádicas. Tais bacias preservam, em suas rochas, um importante, e ainda pouco explorado, registro de vida cretácica.

Fragmento de teto e caixa craniana da S. jaguaribensis

Fragmento de teto e caixa craniana de S. jaguaribensis

No fim de 2005, uma expedição geológica realizada por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) realizou estudos de cunho estratigráfico nesta região. Em seus estudos, os pesquisadores registraram diversos afloramentos com ocorrência de fósseis e coletaram alguns espécimes. Um dos fósseis coletados, um pequeno fragmento craniano à primeira vista sem graça, foi identificado como pertencente a uma nova espécie de crocodilomorfo, descrita no último volume da revista Palaeontology e batizada de Susisuchus jaguaribensis (Fortier & Schultz, 2009). Os responsáveis pela descrição do novo animal foram os paleontólogos Daniel Costa Fortier e Cesar Leandro Schultz.

O novo crocodilomorfo se assemelha bastante com Susisuchus anatoceps, descrito para  a bacia sedimentar do Araripe, também no Ceará. S. anatoceps, e  S. jaguaribensis são os dois únicos animais conhecidos representantes da família Susisuchidae, que tem uma especial importância por representar, como é mostrado no artigo, o grupo-irmão de Eusuchia, clado a que pertencem todos os crocodilianos modernos. Assim, compõe uma parte importante do quebra-cabeça que revela as complexas afinidades filogenéticas dos crocodilomorfos.

S. jaguaribensis (A) e S. anatoceps, uma espécie intimamente relacionada (B)

S. jaguaribensis (A) e S. anatoceps, uma espécie intimamente relacionada (B)

Outro fato interessante é o de que o holótipo de S. jaguaribensis representa o mais antigo registro fóssil de crocodilomorfo do Brasil.

Esta nova descoberta é apenas uma pequena amostra do quanto as pequenas “bacias de Iguatu” são interessantes do ponto de vista paleontológico. A fauna nelas registradas são o testemunho de um importante evento: essas bacias foram formadas no momento em que as placas sul-americana e africana estavam em processo de separação.

Mais pesquisas e trabalhos de campo nestas bacias sedimentares estão sendo realizados e podemos esperar que as bacias de Iguatu nos revelem agradáveis surpresas em um futuro próximo!


Referências:

Fortier, D.C.; Schultz, C. L. 2009. A new neosuchian crocodylomorph (Crocodyliformes, Mesoeucrocodylia) from the early Cretaceous of birth-east Brazil. Palaeontology 52(5) pp. 991-1007.


O novo crocodilomorfo se assemelha bastante com Susisuchus anatoceps, descrito para  a bacia sedimentar do Araripe, também no Ceará. S. anatoceps, e  S. jaguaribensis são os dois únicos animais conhecidos representantes da família Susisuchidae, que tem uma especial importância por representar, como é mostrado no artigo, o grupo-irmão de Eosuchia, clado a que pertencem todos os crocodilianos modernos. Assim, compõe uma parte importante do quebra-cabeça que revela as complexas afinidades filogenéticas dos crocodilomorfos.

Prestosuchus chiniquensis, um rauissuquídeo do Triássico do rio Grande do Sul.

prestosuchus

Material em exibição no Museu de Paleontologia Irajá Damiani Pinto – UFRGS